Impunidade marca 13 anos do Massacre de Eldorado do Carajás

Impunidade marca 13 anos do Massacre de Eldorado do Carajás

BRASÍLIA – Na sexta-feira, 17 de abril, o País relembra uma das ações policiais mais violentas de sua história recente: o massacre de Eldorado do Carajás, no Pará. A data foi marcada como dia internacional da luta das lutas dos camponeses. É uma homenagem à luta pela terra pelos camponeses de Carajás e de todas as partes do mundo.

Passados 13 anos, a impunidade continua. Os 155 policiais que mataram 19 trabalhadores rurais, deixaram centenas de feridos e 69 mutilados. Destes, 144 foram incriminados. Mas passada mais de uma década, apenas dois deles – o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira – foram condenados após três conturbados julgamentos. Ambos aguardam em liberdade a análise do recurso da sentença, que está sob avaliação da ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

E o que aconteceu com os demais? Continuam atuando livremente nas ruas das cidades do Pará e, a menos de um ano (setembro de 2008), cerca de 90 policiais envolvidos no massacre de Eldorado do Carajás foram premiados, em vez de punidos. Por meio de decreto, a governadora Ana Júlia Carepa (PT) os promoveu os soldados ao posto de cabo. Os policiais agraciados pela governadora se livraram na primeira instância da acusação de homicídio qualificado, mas ainda um recurso no STJ que pede a condenação deles.

O massacre aconteceu no dia 17 de abril de 1996, na rodovia PA-150, próximo de Eldorado dos Carajás, no sul do Pará. Centenas de trabalhadores ligados ao Movimento dos Sem-Terra (MST), inclusive mulheres e crianças, caminhavam em direção a Belém, capital do Pará. As famílias iriam à capital pressionar o governo estadual – o governador à época era Almir Gabriel, do PSDB – a desapropriar a fazenda Macaxeira.

Na véspera, os trabalhadores haviam decidido reivindicar ônibus e caminhões para apressar a chegada a Belém, e para isso resolveram bloquear a rodovia. Após o bloqueio, a Polícia Militar foi acionada e, em pouco tempo, houve uma negociação. Os ônibus seriam liberados desde que a estrada fosse desobstruída. A proposta foi aceita pelos sem-terra.

Encurralados e massacrados pela PM

Fechado o acordo, tudo parecia caminhar para uma solução pacífica. Mas, segundo relatos dos sobreviventes do massacre, tudo não passou de uma armadilha. Contam que, em vez de liberar a passagem dos sem-terra, os policiais militares bloquearam a rodovia, e as tropas vindas de dois sentidos da estrada (de Marabá e de Parauapebas) encurralaram os sem-terra. Eles estavam armados apenas com paus, pedras e ferramentas, enquanto os policiais portavam armas pesadas.

Os relatos dão conta que a Polícia Militar chegou ao local lançando bombas de gás lacrimogêneo e atirando, primeiro para o alto e depois em direção aos manifestantes. Não houve qualquer tipo de negociação. Diante da brutalidade da PM, os sem-terra tentaram se defender com o que tinham às mãos – paus, pedras, ferramentas de trabalho e tiveram que recuar.

Muitos foram mortos e feridos. No total, 19 homens foram assassinados e, segundo a perícia, em muitos casos à queima-roupa, com tiros no tórax ou na cabeça. Outros foram chacinados a golpes de foice e de facão, quando já estavam feridos ou totalmente imobilizados. Não há relatos de mulheres e crianças terem sido assassinadas, o que sugere uma seletividade por parte da PM. O Exército teve uma participação antes do massacre, com infiltração e trabalho de inteligência. A repressão fez um trabalho de coleta de informações, identificando as lideranças mais combativas.

“Eles [os policiais] estavam procurando as lideranças, os mais jovens e homens. Às vezes fazíamos reuniões, de vez em quando tinham policiais. O major Oliveira [um dos comandantes da tropa da PM na operação] sempre ia ao nosso acampamento negociar com o finado Oziel. Ele via que na nossa reunião tinha mais jovens e homens”, conta Miguel Pontes da Silva, 42 anos, sobrevivente do massacre.

Oziel Alves Pereira era um dos líderes do acampamento da fazenda Macaxeira, e tinha 17 anos. Os relatos de vários sobreviventes dão conta que ele foi capturado pela tropa da PM e torturado.

Ação premeditada da polícia

À época ficou evidente que o massacre foi uma ação premeditada da polícia, a mando do governo estadual, com a conivência do então governador Almir Gabriel. Mesmo assim, houve inúmeras tentativas de encobrir a chacina, e inclusive tentar criminalizar o MST, fazendo com que a culpa pela violência recaísse sobre as vítimas.

“Boa parte das pessoas imagina que o que aconteceu naquela tarde foi o seguinte: policiais militares despreparados e com uma tendência clara à violência, foram no local da paralisação dos trabalhadores, começaram a atirar e o resultado disso foi 19 mortos. Mas não foi isso que aconteceu. Foi completamente diferente e isso foi demonstrado de forma segura no processo”, descreve Carlos Guedes, advogado do MST.

Guedes rela que toda a ação dos policiais resultou em seis mortes. “Mas como você sabe disso? Porque quando a operação militar foi encerrada na pista, o coronel Pantoja mandou seus oficiais contarem os mortos. Então seis mortos foram contados e vários feridos na pista. E o coronel Pantoja mandou recolher os feridos e, segundo ele, encaminhar os feridos para os hospitais locais. O que aconteceu foi que os feridos nunca chegaram aos hospitais. E não chegaram seis mortos, chegaram 19”, diz o advogado. E completa: “Pelo menos treze, de forma inquestionável, foram executados depois de encerrada a operação policial e isso foi demonstrado de forma muito segura no processo”.

Entre os executados após a ação policial, está o próprio Oziel: “Ele tinha dois buracos de bala nos olhos e outro na testa. Só o identifiquei pela roupa. Via-se uma massa de carne disforme no lugar onde havia sido seu rosto”, relata o advogado Carlos Guedes.

MST faz ações no Pará para
cobrar punição dos culpados

BRASÍLIA – Inconformado com a impunidade, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) promove esta semana uma série de ações, no Pará e em outras regiões do Brasil, para cobrar a condenação dos responsáveis pelo massacre e apoio às famílias sobreviventes. OMST montou dois acampamentos em território paraense para exigir justiça. Desde o dia 10 cerca de 500 trabalhadores participam de atividades no Acampamento da Juventude, na Curva do S, em Eldorado do Carajás. Em Belém, 600 pessoas estarão mobilizadas depois do dia 14. As atividades se encerram no dia 17.

A mobilização é para denunciar que, depois de tanto tempo do massacre de Eldorado do Carajás, ninguém foi preso e as famílias ainda não foram indenizadas, explica Ulisses Manaças, da coordenação nacional do MST. “Cobramos a indenização de todas as famílias e atendimento médico aos sobreviventes. Defendemos também um novo julgamento para impedir que a morte de 19 companheiros fique impune”, diz ele. Além disso, o MST cobra do governo a reforma agrária como forma de acabar com a violência contra os trabalhadores rurais.

Em 2007, os sem-terra conseguiram uma vitória parcial. O governo do Pará indenizou 23 famílias vítimas do massacre de Eldorado do Carajás. No ano seguinte, o governo agraciou aos soldados que participaram do massacre, promovendo-os ao posto de cabos da Polícia Militar do Pará. O MST cobra indenização para as 79 famílias atingidas pela violência policial, além da regularização do atendimento médico multidisciplinar aos feridos durante o massacre. Muitas das vítimas ficaram com balas alojadas pelo corpo.

"A gente lamenta essa mentalidade de grande parte dos juristas, que acha que a pessoa deve recorrer eternamente, pela chamada presunção de inocência. Esse processo acaba gerando impunidade total e absoluta”, afirma o promotor Marco Aurélio Nascimento, que atua no caso. Para o advogado Paulo Guedes, que acompanhou o caso desde abril de 1996 até o último julgamento, em maio de 2002, acredita que a Justiça ainda não resolveu o caso. Guedes também alerta que existem dois tipos de responsabilidades em relação ao massacre que a Justiça tem de levar em consideração: as responsabilidades criminal e política.

“Se todos os que foram denunciados, desde o coronel Pantoja até o último soldado, tivessem sido condenados, isso por si só seria insuficiente. Outras pessoas tiveram participação decisiva no massacre, como o governador (Almir Gabriel), o comandante geral da Polícia Militar e o secretário de Segurança Pública (Paulo Sette Câmara). Estes sequer foram envolvidos no caso”, lembra o advogado.

Charles Trocate, coordenador do MST no Pará, a cultura da violência gera tem gerado a cultura da impunidade. “Carajás evidenciou um problema em proporções maiores e o Estado não foi capaz de criar instrumentos que corrigissem isso. Primeiro, se negou julgar e condenar o governador, o secretário de Justiça e o comandante geral da PM, e segundo, nestes 13 anos, não foi produzida nenhuma condenação porque é o Estado que está no banco dos réus.” (C.A.)

Caminho do caso na Justiça

Junho de 1996 - Início do maior processo em número de réus da história criminal brasileira, envolvendo 155 policiais militares. Em 10 anos, o processo ultrapassou as 10 mil páginas.

16 de agosto de 1999 - Primeira sessão do Tribunal do Júri para julgamento dos réus em Belém, presidida pelo juiz Ronaldo Valle. Foram absolvidos três oficiais julgados - coronel Mário Colares Pantoja, major José Maria Pereira de Oliveira e capitão Raimundo José Almendra Lameira. Foram três dias de sessão com cerceamento dos poderes da acusação, impedimento da utilização em plenário de documentos juntados no prazo legal, permissão de manifestações públicas de jurados criticando a tese da acusação e defendendo pontos de vista apresentados pela defesa.

Abril de 2000 - O Tribunal de Justiça do Estado do Pará determinou a anulação do julgamento, decisão mantida em um segundo julgamento, em outubro de 2000. Antevendo a anulação do julgamento, o juiz Ronaldo Valle solicitou o afastamento do caso. Dos 18 juízes criminais da Comarca de Belém, 17 informaram ao Presidente do Tribunal de Justiça que não aceitariam presidir o julgamento, alegando, na maioria dos casos, simpatia pelos policiais militares e aversão ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e aos trabalhadores rurais.

Abril de 2001 - Nomeada uma nova juíza para o caso, Eva do Amaral Coelho, que designou o dia 18 de junho de 2001 como data para o novo julgamento dos três oficiais. Alguns dias antes do início da sessão, a juíza determinou a retirada do processo da principal prova da acusação, um minucioso parecer técnico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com imagens digitais que comprovavam que os responsáveis pelos primeiros disparos foram os policiais militares. O MST reagiu e a juíza reviu sua posição, suspendendo o julgamento sem marcar nova data.

14 de maio a 10 de junho de 2002 - O julgamento foi retomado. Após cinco sessões, entre os 144 acusados julgados, 142 foram absolvidos (soldados e 1 oficial) e dois condenados (coronel Pantoja e major Oliveira), com o benefício de recorrer da decisão em liberdade. Em decorrência dos benefícios estendidos aos dois únicos condenados, as testemunhas de acusação não compareceram mais ao julgamento, em função de ameaças de morte e por não acreditar na seriedade do julgamento. Durante vinte dias, jornais do Estado do Pará publicaram detalhes sobre intimidações e ameaças de morte que estariam recebendo as principais testemunhas da acusação, principalmente Raimundo Araújo dos Anjos e Valderes Tavares. Nada foi feito em relação à proteção e salvaguarda de tais testemunhas. O MST não aceitou participar de um julgamento onde não estivessem sequer garantidas a segurança e a tranqüilidade das pessoas fundamentais para a acusação.

Novembro de 2004 - A 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Pará julga numa só sessão todos os recursos da defesa e da acusação e mantém a decisão dos dois julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, absolvendo os 142 policiais militares e condenando o coronel Pantoja (228 anos de prisão) e o major Oliveira (154 anos de prisão).

22 de setembro de 2005 – O coronel Pantoja é posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal.

13 de outubro de 2005 – O major Oliveira é posto em liberdade por decisão do Supremo Tribunal Federal.

2006 - Recurso especial é apresentado ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, recurso extraordinário é apresentado ao Supremo Tribunal Federal.

Abril/2007 - A governadora do estado Ana Júlia Carepa assinou decreto que concede indenização e pensões especiais a 22 famílias de trabalhadores sem-terra vítimas da chacina. “O que eu fiz foi reparar uma injustiça, reconhecendo a responsabilidade do governo do Estado”, disse Ana Júlia. A governadora classificou o massacre de Eldorado do Carajás como “um dos episódios que mais envergonhou não só o Pará diante do Brasil, mas o Pará diante do mundo”.

Setembro/2008 - O governo de Ana Júlia Carepa promoveu os soldados que participaram do Massacre de Eldorado do Carajás. Entre 87 e 90 policiais foram promovidos a cabo. Apesar de todos os promovidos já terem sido absolvidos em primeira instância pela acusação de homicídio qualificado, ainda há um recurso no STJ que pede suas condenações.

Autor: Chico Araújo
Fonte: Agência Amazônia

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